Mens sana in corpore sano

Corpus e Pertès estão numa espécie de caverna onde só se têm um ao outro, e onde cada um deles só tem a palavra, para si e para o outro. Têm diálogos infinitos, cuspidos em ódio ou amor, que pretendem que os salvem mas que, apesar de virarem todas as certezas do avesso, os deixam sempre no mesmo sítio. Torturam-se com jogos de submissão, libertam-se através da indiferença e da perda de interesse por tudo. Tentam o amor, mas sabem que apenas o amor por si próprios os pode salvar. Experimentam a felicidade, para se libertarem da agonia, mas até esta começa a ser demasiado opressiva. Quando já não aguentam viver e sentir em si, querem trocar de papéis, ter a vida do outro como último recurso, para se escaparem de si. Aí, precisam por vezes da orientação de um ser que é apenas Voz, que lhes dá instruções, tal como a nós desde o início da peça, e que parece ter o poder de os transformar noutra coisa ou de os manter na mesma. Mesmo quando mudam, porque nada muda, acabam por voltar precisamente ao que eram.

Fotografia de Bruno Simão

Nesta criação colectiva de Carlos Paulo, João Tempera e Hugo Franco deparamo-nos com um cenário minimalista que pode ser pós-apocalíptico ou pré-civilizacional, mas que apenas nos mostra um bocado isolado do mundo.
Este cenário é constituído por objectos com uma função em cena, simbólica e estética, que nos dá o estado de espírito das personagens (nos baloiços), a medição de forças entre elas, o seu domínio psicológico (no balancé), a tentativa de contacto com o mundo exterior àquele círculo, mesmo que seja através da solidão (no buraco de onde inicialmente emergem as personagens, para onde fogem e onde está o pôr-do-sol). Inclusivamente uma das personagens está em cena apenas através do cenário, um altifalante.
O cenário dá força às interpretações e é parte fundamental da encenação, é funcional.

Fotografia de Bruno Simão

Em Agonia Irreversível, a encenação serve a palavra.
A movimentação das personagens, a utilização dos objectos de cena, a postura dos actores e o ritmo imposto apenas são suporte da mensagem, das mensagens sobrepostas que nos querem transmitir.

O ritmo frenético da peça faz-nos ter o cérebro alerta, pensar, mas também traz o risco de embalar. De repente, o sentido do que é dito pode perder-se na velocidade com que nos é atirado, sem paragens.

Nas  interpretações presentes temos Carlos Paulo e João Tempera.
Carlos Paulo, actor incontornável da Comuna, é tecnicamente perfeito. Prova disso é, por exemplo, a sua interpretação na peça Do Desassossego, também na Comuna, em que interpretava seis personagens diferentes, todas elas com bastante profundidade.
Em Agonia Irreversível tem o corpo, voz e dicção certos, não falha o ritmo em catadupa nem os silêncios, nem a respiração. Fica-se apenas com a sensação de que uma pequena imperfeição o tornaria brilhante. A sua interpretação é sempre muito racional, técnica, não há vestígios da falha humana.
Bruno Simão
João Tempera também nos apresenta uma personagem muito bem trabalhada e construída. Destacam-se os contrastes de corpo, ritmo e movimentação da sua personagem por oposição à de Carlos Paulo.
Ao longo da peça a sua interpretação é bastante histriónica e afectada, mesmo quando à sua personagem é atribuída a parte mais racional daquela relação.
Esta pode ser uma decisão de encenação, uma vez que a outra personagem era mais sofrida, mais contida, mesmo nos seus momentos de força.
No entanto, lembramos alguns momentos da personagem de João Tempera em Design for Living, que também eram apresentados nesse nível do exagero.

Fotografia de Bruno Simão

Esta peça, do espanhol Juan Benet, assenta indiscutivelmente no texto, tudo o resto lhe é acessório e serve apenas para o sustentar. É um drama psicológico desenrolado em conversas filosóficas e silogismos em espiral que apenas permite ao público respirar quando os actores o fazem.

O texto é forte do início ao fim e tem a particularidade de poder proporcionar murros no estômago consecutivos a quem se der ao trabalho de pensar.
É a vida do Homem com todas as contradições inexplicáveis que apresenta, com todos os problemas que pensamos e sentimos, com a capacidade de regeneração que lhe é inerente.
É a vida pensada ponto por ponto, com tudo o que isso pode ter de bom e de mau.

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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!