Ridendo castigat mores

Num espaço vazio, a criada dos Noialles, Séverine, vai contando, através das suas lembranças, histórias de artistas, mecenas, reais ou inventados por ela ou para nós. Vamos viajando desde o início do século XX até à década de setenta e acompanhando as histórias vividas no período artístico do surrealismo na casa de um dos grandes mecenas daquele tempo, Noailles, daquele local, Hyères, França. 




Desde logo, deparamo-nos com um cenário minimalista, quase inexistente, apenas uma mesa, uma cadeira e um lustre. Esta opção vem de acordo com a linha do encenador, Jorge Silva Melo, que privilegia muitíssimo o trabalho de texto e do actor. Assim, enquanto podemos concentrar-nos absolutamente na interpretação de Elsa Galvão, temos ao mesmo tempo por parte do cenário informações e sensações essenciais: vazio, solidão, decrepitude. Traz-nos a ideia de que, muitas vezes, pouco é muito. Não precisamos de mais nada, está tudo no que não se vê, como de resto o final do espectáculo vem confirmar. 

A cena é essencialmente envolvida na falta de luz, numa penumbra que cria um ambiente intimista, de solidão, realismo. Ao longo do espectáculo a luz vai mudando, no que se reflecte um óptimo trabalho, pois as variantes apenas se notam depois de concluídas. 
Durante o processo, o público é embalado de história em história sem sofrer mudanças drásticas que desviariam a atenção do texto e da actriz em cena. Aliás, o único foco de luz constante, apesar de ténue, é para nos mostrar o corpo e expressão da actriz, o que mais um vez vem reforçar a sua solidão e ao mesmo tempo a sua postura contemplativa, 
de quem vai desenrolando o passado aos nossos olhos. Neste caso, a subtileza na iluminação foi uma óptima opção. 

Também quanto à música, é possível dizermos que menos é, sem dúvida, mais. A ausência quase total de som ao longo do espectáculo, mesmo quando pelo texto ou interpretação, é passada a ideia de que algo sonoro vai acontecer, é, quanto a mim, brilhante. É o vazio constante de barulho que muito contribui para o sentimento de solidão que não desaparece ao longo de toda a peça. É a falta de música que completa a ideia de lembrança do passado, de um revivalismo realista. A ideia não é o público perder-se naquelas histórias, naquela alegria, é permanecer ali, onde tudo o que existe é apenas aquele grande nada, apenas a lembrança. 

Tratando-se de um monólogo, é sem dúvida o texto, juntamente com a interpretação do actor, que faz o espectáculo e, neste caso, o espectáculo é claramente de crítica social de uma época, de tipos sociais (artistas e mecenas), de evolução ou não. É um texto que, apesar de aparentemente fácil, superficial e cómico, nos fala de variadíssimos artistas de cinema, pintura, música, teatro, fala-nos da vida como ela se passou desde os loucos anos 20, quando o prazer e a liberdade imperavam, até aos anos 70, onde o que impera é a decrepitude deixada pelos anos do pós-guerra. É quase impossível, para o  espectador desprevenido, reter todas as referências presentes no texto, mas isso parece-me, na 
verdade, uma opção de encenação, a riqueza de referências dá-nos a ideia do corrupio, do movimento, da casa cheia, da arte que passava por aquele espaço onde agora vemos apenas uma mulher numa casa vazia. 
É um texto que traz de volta a velha máxima de Molière que caracteriza, por exemplo e em Portugal, Gil Vicente: ridendo castigat mores, a rir se castigam os costumes.  

Naturalmente que hoje, século XXI, o público está bastante mais à vontade com a crítica social através do humor, mas ainda assim, nem sempre é fácil descobrir debaixo do riso, da piada fácil, da aparente superficialidade a verdadeira intenção crítica que pode referir-se a uma pessoa apenas, a um tipo social ou a uma nação inteira ou estilo de vida. Nesta peça isso acontece: será que o autor quer falar-nos exclusivamente daquele tempo, dos loucos anos 20 por oposição aos 70, ou será o texto um espelho para os nossos dias, onde o sentimento geral do país parece ser o de abatimento, alheamento, dificuldades económicas, exaltação de um passado que só parece melhor porque já passou? 
Critica-se a libertinagem em geral, a homossexualidade, adultério, incesto, luxúria, os intelectuais, os artistas, a ingenuidade do povo, tudo tão característico da altura como do momento actual. 

Do texto, é ainda gritante a ideia de que “a arte não serve para nada, só para gastar dinheiro”, o que me leva aqui a uma reflexão de cariz apenas pessoal. Vivemos num tempo em que tudo acontece e é permitido que tudo aconteça, sobretudo no mundo da arte. No entanto, muitas vezes, quando olhamos em volta, podemos ter esta sensação: 
para que serve? O que é isto? E, muitas vezes seremos tentados a reagir como Séverine: “L’amour L’amour L’amour, duas páginas cheias da mesma palavra e era arte”. Às vezes, é bom ter um autor, um artista, que volta a levantar esta questão e no-la atira: para que serve a arte e o que é?  
Uma opção corajosa e revitalizante de Jorge Silva Melo. 

Há ainda que referir que este texto é “livremente” inspirado em duas obras de Buñuel, meu último suspiro  e Uma criada de quarto. E Jorge Silva Melo transforma a sua criada, Séverine, na personagem Belle du Jour, heroína do romance de Joseph Kessel, depois adaptado por Buñuel. 

Temos então Elsa Galvão como ela só.  Não é a primeira vez que esta actriz trabalha com Jorge Silva Melo (No papel da Vítima 2004, Conferência de Imprensa e Outras Aldrabices, Os animais domésticos 2005, O peso das Razões 2009, entre outras), nem é a primeira vez que dá vida a uma personagem cómica, aliás o seu perfil vai bastante de 
encontro a este tipo de personagens. No entanto, não acredito que aquilo que vemos em palco seja a actriz a fazer de si própria. A sua interpretação é muito vívida, tal como o texto, mas cheia de técnica, dirigida e trabalhada pela encenação. Só assim se conseguiria manter um monólogo de mais de uma hora. Todos os trejeitos e expressões corporais são claramente trabalhados, e no entanto, o que nos chega é a sensação de naturalidade e facilidade, ora isto é um bom trabalho de actor e não apenas o actor. 
A criada vive de recordações e é empolgante e bastante cómico quando a vemos a recordar-se e viver novamente aquelas experiências: os atentados à sua privacidade enquanto mulher, as suas paixões, as suas simpatias e antipatias, os seus fantasmas. A actriz passa ao público um realismo brutal através do gesto, rosto e corpo, e da interpretação com que rapidamente passa de momentos de comicidade extrema para a tristeza da solidão. 
Ao longo de todo o espectáculo em que mantém o registo cómico, vai dando sempre, e muito bem, a ideia de solidão e tristeza por detrás de todas as recordações felizes que guarda, há sempre algo que sentimos, que permanece no ar através da sua interpretação, que é um misto de sentimentos característico do ser humano, e é isso, quanto a mim, que 
torna a personagem, e consequentemente a interpretação da actriz, notável. 




Quanto a Vânia Rodrigues, no apontamento final do espectáculo, foi marcante apesar de rápida, a sua aparição. 
Aqui sim, vemos uma interpretação não realista mas histriónica, expressionista, bastante de encontro ao que poderíamos imaginar ser uma condessa (de Noialles) casada com um mecenas da cultura: uma mulher que se sente negligenciada em prol de todos os outros interesses do seu marido. Um óptimo trabalho técnico que, mais uma vez, passa a ideia de solidão por baixo de toda a loucura aparente. 


Jorge Silva Melo tem trabalhado como encenador, dramaturgo, director artístico, mas este foi o último texto que escreveu e fê-lo há cerca de quatro anos apesar de só estar agora em cena. E quando o escreveu, fê-lo já como monólogo para Elsa Galvão. O resultado, como o próprio diz, foi esta paródia inconsequente sobre a libertinagem artística e sexual dos anos 20. 

Neste espectáculo houve uma clara opção pela movimentação restrita de Elsa Galvão ao longo de toda a 
peça. Penso que esta opção é demonstrativa da intenção de evidenciar o trabalho do actor: não é preciso utilizar o espaço todo se através da interpretação o actor conseguir fazer o público viajar por onde quer e preencher sozinho todo esse espaço. 
Até a posição do corpo da actriz parece ter sido marcada ao pormenor, do que ressaltava a ideia de realismo: uma pessoa comum, a falar para si ou para um público imaginário, não precisa de mudar muito de posição e tendencialmente não o fará porque está a viver as suas recordações, excepto quando essas recordações a emocionam e entusiasmam de tal maneira que passam para o presente, o que também se verificou no espectáculo. 
Esta encenação quis vincar bastante e utilizar as repetições do texto, o que traz o risco do cansaço ao público ou de identificação (o público pode cansar-se ou entusiasmar-se por já imaginar o que vai ser dito a seguir). 
Neste caso, penso que vivenciamos ambos, mas sobretudo, as repetições fazem lembrar o discurso popular, são características nas histórias contadas por “gente do povo”, penso que será esse aqui o objectivo. 

O final do espectáculo é uma surpresa deliciosa. Afinal, todos os fantasmas, as histórias, o imaginário, tudo isso nos aparece para desafiar a imaginação do espectador, para a completar. De repente, há uma explosão de luz e cor em contraste absoluto com todo o espectáculo que acabamos de presenciar.  
O momento do monólogo de Vânia Rodrigues, tal como o aparecimento de todos os figurantes é desconcertante de tão surpreendente e dá ao espectáculo um final extraordinário. 




A peça tem o ritmo característico de monólogos: é variável e depende quase totalmente da interpretação do actor a cada momento. Neste caso, felizmente, a actriz conseguiu imprimir um ritmo fluido, rápido e incisivo sempre que era preciso e, contudo, trabalhar os silêncios e os tempos, não perdendo o público. Claro que sendo um monólogo esta 
sensação variará de espectador para espectador, mas quanto a mim, o tempo foi sempre 
o correcto, não se sentiu a estranheza, a sensação de faltar algo. 


Há ainda a salientar a coincidência feliz da apresentação desta peça se dar, agora, no Teatro da Trindade, antes já tinha sido apresentada na Culturgest e no TECA.  
A sala do Teatro da Trindade adequa-se na perfeição à peça. Um teatro antigo, outrora cheio de glamour, hoje infelizmente tantas vezes vazio e que passa a imagem de uma certa falta de manutenção. Assim, parece quase o seguimento do que se passa no palco: um ambiente lúgubre, de solidão e abandono, uma história sobre a decadência da aristocracia francesa, antes rica, luminosa, alegre e festiva. 

É a fala da criada dos Noailles, Séverine. Séverine a contar-nos histórias do passado, do presente, de uma França, do mundo inteiro, dela própria, talvez até de cada um de nós. 










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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!