Amor amor

Felícia vive um drama da sua meia idade enquanto passa férias no Fortuna Palace, depois de ter sido sabiamente aconselhada pela Virtude, sua madrinha, a conhecer o mundo sem nunca largar a que deveria ser a sua melhor amiga, Modéstia. Durante estas férias, Felícia é atacada pelo amor de um jardineiro ucraniano, que vem pôr em causa todos os valores com que viveu a sua vida e nem por isso a tornaram mais feliz. Terá que decidir-se entre a moral e a essência. Ou perceber se elas serão a mesma coisa, com a desajuda de um desfilar de divindades na Terra.

Os Desastres do Amor nasce de uma adaptação e colagem de algumas peças ou diálogos de Marivaux: L'Amour et la Verité, Le chemin de la Fortune, La Réunion des Amours, Félicie e partes de Le Cabinet du Philosophe. São precisamente estes os motes desta peripécia: o amor e a verdade na busca da felicidade, um encontro entre Amores e as reflexões filosóficas acerca de tudo isto.

Marivaux foi criticado por ter o Amor como tema único das suas comédias. O autor não o nega, diz antes que não há nada de monótono ou uniforme no conflito do amor consigo próprio e na diversidade de maneiras com que por ele é abordado. 
Se é certo que as suas peças vivem mais do diálogo do que do desenrolar de uma acção, é através de subtis camadas do discurso que se percebe a riqueza do seu estilo, esse marivaudage, apontado como a metafísica do amor, que serve de capa à análise do comportamento humano.

Foi neste estudo do comportamento humano que Luís Miguel Cintra quis pegar ao construir este espectáculo, considerando que deve ser esse o objectivo do teatro e do trabalho de actores.

Diz também o encenador que sentiu necessário com este espectáculo contrariar o “esvaziamento cultural” que agora se vive, povoando-o de referências culturais que lhe são queridas, mesmo acreditando que parte do público actual possa não as compreender. As referências publicitárias que vão aparecendo ao longo do espectáculo são disso exemplo.

Luis Santos
A encenação é complexa e assenta sobretudo no poder dos diálogos carregados de metáforas contraditórias. É fácil ao espectador menos atento perder-se na mudança dos nomes das personagens, na panóplia de línguas presentes, no regresso à mitologia e a algumas dissertações filosóficas menos evidentes.

Assistimos várias vezes às personagens a serem público umas das outras em sintonia connosco, como se estivessem a avaliar de fora o conflito que elas próprias viverão.

Vemos também a humanização dos deuses romanos, eles têm tiques, trejeitos, dúvidas, inseguranças e birras entre si. Caíram do Olimpo para um resort de luxo, onde lidam com a vulnerabilidade humana, alguns deles acabando por sucumbir ao Escrúpulo ou à Ganância.

Luis Santos
Os actores mostram um trabalho irrepreensível num estilo afectado e artificial, também apontado como característica do próprio Marivaux na sua obra.

De salientar o trabalho da oralidade de Nuno Nunes, Dimitri, e Vítor D’Andrade, como Apolo, que acaba por ser a marca das suas personagens.

Os apontamentos mais cómicos do espectáculo são construídos por Luís Miguel Cintra, aqui nas personagens de Dom Cupidom, o amor adulto, e Redondinho, protagonista de mais um momento musical. Apesar de, como habitualmente, muito bem conseguidos, ficamos com o desejo de o ver dar mais espaço de construção de cena às outras personagens, é por vezes a dar a cena que se brilha nela.

Luis Santos
O cenário e figurinos, de Cristina Reis, são também ricos em metáfora, simbologia, apesar dos apontamentos de abstracção como o fosso para a Fortuna ou os mausoléus das virtudes.

Os momentos musicais, apesar de servirem sobretudo para aligeirar a cena, servem também o intuito mais emocional e introspectivo de personagens e espectadores.

Luis Santos
É um espectáculo que nos dá o Amor em conflito consigo próprio por ser símbolo da loucura, desejo e liberdade, ao mesmo tempo que é ternura, pureza e idolatria.
Há o Escrúpulo, que enquanto guarda o caminho da honra, da consciência e da culpa, é ele próprio a morte de algumas virtudes.
Há finalmente a Fortuna ou a procura dela, que nos confunde, por não sabermos se está na virtude enquanto construção ou na moral que nos deveria ser simples e inerente.

Fica-nos a ideia de que o Homem é o responsável por si próprio, é ele que se constrói em cada escolha, é ele que tem o poder de construir o mundo e não o contrário.

3 comentários:

  1. Apesar de não ter visto este espectáculo,felicito-te pela análise que fazes.Como já vi outros espactáculo encenados pelo Luís Miguel Cintra,inclusivamente aquele que ele está a encenar agora("Ilusão") e no qual participo,como sabes,percebo que é de facto o estilo muito próprio deste encenedor/actor.Pois lá estão também as referências/alusões às figuras míticas da Antiguidade Clássica(sobretudo grega).

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  2. Quanto aos outros espectáculos que são objecto de comentários teus,não me pronuncio,por não os ter visto.

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  3. Obrigada pelo comentário Insano e bom trabalho!

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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!