Há dias e dias

Um casal abre-nos a sua casa e dá-nos a sua intimidade. Ele trabalha ao computador, alheado do mundo, ela pede atenção porque não tem grande coisa para fazer. Desde logo começa uma pequena discussão por motivos mínimos, que poderia ser por motivo nenhum, fenómeno que nos indica que aquele casal estará junto há algum tempo e sofre as consequências naturais desse desgaste. A uma discussão sobre cinzeiros e cigarros sobrepõe-se uma discussão sobre falta de carinho e atenção, a essa uma outra sobre a relevância do Natal e todos os seus rituais, depois uma tentativa de redenção soterrada por mais uma discussão sobre quebrar hábitos e finalmente ele sai porta fora, pondo em causa um casamento apenas por coisas minúsculas. O costume.

Produção Feltro Preto

O texto, de Rafaela Lacerda, parece simples, sobretudo por familiaridade.
Qualquer pessoa do público irá certamente rir-se, ainda que só para si, por identificar situações que quase inevitavelmente poderão ser a rotina de qualquer casal, mais ou menos feliz.

No texto, a mulher é posta na posição mais emocional e o homem na posição mais prática, mais desligada. Mas isto são estereótipos facilmente ultrapassáveis: não é disso que se trata aqui. Aqui, existem as dificuldades de ambas as partes em encontrar-se sem ceder demasiado, a dificuldade de cada um, e perante o outro, em ultrapassar hábitos que começam a moldar uma vida, e que tantas vezes são necessários a uma das partes, mesmo sem explicação.

Na interpretação, os actores Eduardo Ribeiro e Rafaela Covas estão bem, sem grandes artifícios ou complexidade técnica, como aliás a peça pede.
Rafaela Covas dá-nos na perfeição a imagem do amuo amoroso: é uma situação de birra que passa por momentos de falsa irritação (momento do chamado beicinho) e por outros de verdadeira mágoa (quando o beicinho é trocado por palavras e actos mais agressivos). A actriz teve inclusivamente a delicadeza de corar, quando a sua personagem passou da sensualidade à vulnerabilidade que atinge o amor despeitado.

Eduardo Ribeiro consegue desconcertar-nos com o seu alheamento, a sua falta de reacção, tão característica do que mentalmente associamos ao homem desligado das cenas emocionais femininas.
O único ponto de estranheza prende-se com a sua dicção. É demasiado trabalhada e cuidada para a peça em questão, não é fluente, é quase formal e isso é estranho ao intimismo.

A encenação do espectáculo é justa para com o restante conjunto. É simples, pretende mostrar-nos a realidade sem filtro, sem teatralidade. A qualidade desta peça é precisamente essa falta de acessório e a falta de intensidade dramática, que poderia ser má, mas aqui parece propositada para nos dar uma janela para a vida e não uma composição da vida.


Esta é uma pequena peça sobre as pequenas coisas. É sobre o grande que elas podem ser.
Fala-nos de quão difícil é equilibrar dois egos debaixo do peso da rotina e do quotidiano e ainda assim guardar uma pequena almofada de amor.



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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!