Agora em cena no Teatro S.Luiz, A Dança da
Morte de Strindberg foi representada pela primeira vez
em Portugal em 1969, na Casa da Comédia. Nesse ano foi aclamada como o
espectáculo da temporada e daí para cá, sempre que está em cena, é apontada
como intemporal e incisiva.
Hoje, o encenador da peça, Marco Martins,
escolhe-a porque sente que a peça espelha o actual egoísmo humano e o actual
isolamento do país e da Europa.
Um som inesperadamente potente e invasivo
começa por nos mostrar o que vamos ver: drama. O cenário dá-nos a restante
informação, estamos dentro de uma casa familiar e é uma casa fechada do mundo,
separada dele, num ambiente de isolamento e solidão. Estamos dentro de um
forte.
O casal odeia-se e entedia-se com a passagem
do tempo e com a presença um do outro, apesar de só se terem um ao outro há
muito tempo. Ficamos a saber isto através das primeiras falas e comportamentos
de Alice e do Capitão Edgar, interpretados por Isabel Abreu e Miguel Guilherme.
Percebemos que estão falidos emocional e
financeiramente e que a única forma que têm de passar o tempo é atormentar-se
um ao outro.
Eis que chega um elemento exterior à ilha
física e metafórica em que se encontram, Kurt, um parente de Alice, que
imediatamente é envolvido nas intrigas do casal e no clima de ódio da casa.
Alice e o Capitão tentam à vez manipular Kurt para lhe mostrar qual dos dois
será o mais sórdido e o carácter mais cruel e usam para isso os filhos, o
casamento, a falta de dinheiro e de amor e o seu isolamento paranóico em relação
aos restantes habitantes da ilha. Alice chega mesmo a envolver-se com Kurt no
que parece ser uma tentativa desesperada de se libertar sobretudo
emocionalmente da vida em que se encontra.
A história termina com Alice e o Capitão a
prometer que vão tentar mudar as coisas, tornar a vida em comum mais agradável
mas ao mesmo tempo a mostrarem que nenhum deles acredita numa fuga que não a
morte.
O cenário é curiosamente naturalista e simbólico ao mesmo tempo. Se por
um lado temos a apresentação perfeita de uma casa e do quotidiano que nela
acontece, por outro lado temos toda a solidão e isolamento representados nas
grades que substituem as paredes.
Ao que parece, a encenação não quer aproveitar
tanto a parte simbólica como a naturalista. Escolhe apresentar momentos simples
da vida do casal, usar as coisas como aquilo que são, trabalhar o início,
desenvolvimento e fim da história de forma linear.
O clímax, que deveria produzir a catarse do
público no final, não é um mas vários, e só não acontece no final. Gritaria,
discussões e momentos de paixão e quase morte intercalam com a vida parada de
um casal com 25 anos de convivência, com a calma, o hábito e a lassidão que
isso implica ao longo de todo o espectáculo.
Somente o final é dado por frases que ficam no
ar, uma calma agora serena e nova, uma esperança das personagens, morta à
partida pela anterior desilusão.
É de tal forma imperceptível e pouco credível
esta mudança, que o público não percebe sequer que o espectáculo terminou.
O ritmo da acção é espelho do que as
personagens vivem. É constante o tédio e o enfadamento, mas há uma tensão
latente que os faz explodir em muitos momentos. Assim, a peça decorre entre
lentidão e picos de velocidade, nunca permitindo ao espectador acomodar-se ao
que está a ver e adormecer a atenção.
A luz foi bem trabalhada, é quase sempre
fraca, mortiça, passando a ideia de cansaço e tédio. Tem alguns momentos
divergentes, quando se junta à música sobretudo, produzindo ritmos
completamente diferentes do geral da peça. De salientar a cena em que Kurt
agarra Alice e os dois dançam entre o som gritante e a luz entrecortada, abana
completamente o público.
A sonoplastia, de Ameba, constrói e
desconstrói o ritmo da peça com uma música absolutamente surpreendente e
refrescante que nos transporta para uma realidade diferente da que estamos a
ver. O que podia parecer um elemento de distanciação e estranheza, é pelo
contrário o mais emocional e tocante a que podemos assistir. É o que faz vibrar
qualquer coisa cá dentro.
Considerado um valor seguro num bom
espectáculo, Miguel Guilherme não desilude aqui, apesar de fugir ao estilo em
que muitos o conhecem, a comédia. Constrói uma personagem credível, completa,
um militar em tudo o que isso tem de bruto e presunçoso. De duvidar são os
momentos em que tenta gracejar num estilo próprio do actor e não da personagem.
Já Isabel Abreu, Alice, cantava as frases de
forma longa e arrastada, o que me provocou bastante estranheza precisamente por
estar tão de acordo com o texto que lhe saía da boca. Não é preciso salientar o
evidente. Isabel Abreu tem uma presença fortíssima em palco e agarra bem a
cena. Não creio no entanto que a escolha de construção da sua personagem tenha
sido a mais feliz, porque não há contrastes, há uma mulher amargurada e
despeitada do início ao fim, mesmo nos momentos de suposta paixão com Kurt.
Podemos dizer que Sérgio Praia constrói a
personagem mais estilizada da peça, dando-lhe trejeitos e tiques que nos vão
mostrando o seu caminho, a sua evolução. A sua personagem é uma golfada de ar
fresco para o drama e para o actor, que assim se afasta de personagens
anteriores como nas peças O Deus da Matança e O Senhor Puntila e o seu criado
Matti.
Acredita-se que Strindberg teve sempre
relações conjugais muito problemáticas (foi casado com 3 actrizes) afirmando-se
até que tinha uma faceta misógina. No entanto, ele próprio teorizou sobre o
papel da mulher na sociedade, acusando a hipocrisia moral que via à sua volta.
Ora, isto é o que nos oferece A Dança da
Morte. Um casamento pejado de frustrações devido a
sonhos de que se abdicou em prol do que era suposto fazer-se. Alice deixou a
sua carreira de actriz para se dedicar a um casamento que nunca a satisfez e
Edgar culpa a mulher pela vida infeliz que levam. Ambos se odeiam, ambos se
suportam e cada um deles é tanto o carrasco como a vítima, agarrados sempre ao
seu egoísmo.
Esta permissa de casal cansado e acabado numa
eterna relação de amor-ódio pudemos também ver em Quem tem medo de Virgina
Woolf de
Edward Albee, em 2011 no TNDMII. Nesta peça era o público que tinha que
perscrutar toda a ironia, a amargura, a falta de afecto e o excesso de drama
para ir percebendo o que de facto se passava entre os dois casais. Era um
novelo a desembrulhar lentamente, surpreendentemente. Era avassalador quando o
clímax atingia a plateia. Em A Dança da Morte tudo
nos é dado desde a primeira fala, não há o que pensar, as personagens
contam-nos tudo rápida e directamente.
Olhando para a sinopse da peça deveríamos
esperar um “teatro-metáfora”, mas o que temos é tudo menos uma metáfora. É uma
história simples sem qualquer figura de estilo, dada ao público sem qualquer
artifício e sem lhe dar qualquer espaço para imaginação ou sensibilidade. A
encenação e as interpretações mostram personagens complexas de forma simples,
explicativa.
A tragédia deve transmitir-se com um sorriso
na cara e não com o sofrimento colado à expressão e ao corpo, isso é boneco e
não pessoa.
Esta dança de morte não é representação, mas
apresentação.
Não lembra teatro, mas sim televisão.
O sentimento que trago para casa é: faltou
subtexto.
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