Da submissão

Tomás, um escritor apaixonado pela obra de Leopold von Sacher-Masoch, Vénus de Vison, decide que é preciso fazer uma peça sobre ela, decide que ninguém percebe tão intimamente a obra como ele e, portanto, tem que ser ele a adaptá-la, a encená-la e, quem sabe, a vivê-la.
O encenador decide então abrir audição para a protagonista feminina de Vénus de Vison, mas nenhuma das candidatas parece chegar sequer perto do que ele pretende. Ninguém parece sentir o texto como ele. No final do dia, já depois de terminadas as audições, aparece uma Vanda aparentemente igual a todas as outras candidatas, tratando a obra com igual displicência mas que insiste em prestar provas.
Tomás, sempre reticente, fica atónito quando vê emergir daquela Vanda a sua Wanda, como sempre a imaginou. De repente estão a contracenar, mas já não se percebe se ainda estamos apenas a falar de teatro.


O texto, de David Ives, é deliciosamente sensual, provocante, e desenvolve subtilmente assuntos muito mais profundos do que os que à partida se lêem. As personagens evoluem em jogos perigosos de poder e submissão até ao limite, ao deles, ao nosso. Em palco, fala-se sobre a intimidade que todos os artistas põem nas suas obras e no porquê, pensa-se porque é que certas histórias e personagens parecem tocar tanto certas pessoas, que se juraria serem o reverso delas próprias ou precisamente a sua essência.
Entre as personagens do livro e os actores naquela audição, se não são já os mesmos, constrói-se uma brincadeira visceral, sem qualquer inocência. Quem manipula e quem se submete, quem cede e a quem ceder senão a nós próprios, quem ganha, se alguém?


Aos actores, Ana Guiomar e Pedro Laginha, cabe construir e desconstruir aquelas personagens e ambos conseguiram, muito bem, chegar à profundidade que o texto exigia, deixando o público muitas vezes em suspensão, levado pela cena. No entanto, e sobretudo no início do espectáculo, os contrastes estão demasiado evidenciados, sendo um pouco forçados nalguns casos - como exemplo o discurso mais vulgar de Vanda, que parece nem sempre fazer sentido à actriz.

A encenação tem momentos muito interessantes, que iluminam e reforçam os momentos de tensão e de sensualidade do texto, no entanto, poderia ser mais surpreendente ao longo do espectáculo. Na última cena, porém, redime-se completamente deixando-nos atónitos pelo inesperado, desconcertados pela surpresa.

A sonoplastia e luz do espectáculo que, curiosamente, muitas vezes seguem as personagens da obra e não as que as estão a representar, são muito bem trabalhadas.

Numa viagem ao centro do ser, a plateia vai afundando os seus medos, desejos e vergonhas nas cadeiras, enquanto o voyeur em cada um de nós não consegue tirar os olhos do que ali se nos dá.
Enquanto isso, o texto repete: todos somos facilmente explicáveis, nem sempre somos é destrinçáveis. 

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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!