Contos da moralidade

Os Primeiros Sintomas voltam a apresentar-nos um espectáculo intimista, próximo, o que é potenciado pelo próprio espaço, na Ribeira, muito bem aproveitado pela encenação. Desta vez é para contar a história de Dorian Gray, e quando as personagens são tão ricas como as que nos oferece Oscar Wilde, e as interpretações tão veementes, é sem dúvida um privilégio estar tão perto, tão por dentro daquilo que estamos a ver.


É brilhante a escolha de uma mulher para a personagem de Dorian, representa exactamente a beleza, a aparente ingenuidade e fragilidade próprias da juventude, ali tão necessária, que evolui depois para uma instabilidade emocional, uma inquietação crescente devido à influência mundana, mais prática e realista, da personagem de Henry.

Depois de ver Sandra Faleiro como Dorian, dir-se-ia não se poder pensar naquele espectáculo de outra forma, mérito indiscutível da actriz mas também da encenação de Bruno Bravo.
Não basta que seja uma mulher num papel masculino, aqui é fundamental a sensibilidade com que é construída a personagem, vemos o Dorian em cada gesto, na transfiguração do olhar, no corpo, e não são precisos grandes artifícios para isso: menos é mais, e isso faz quase sempre toda a diferença.

É sobretudo pela personagem de Henry, muitíssimo bem conseguida por Paulo Pinto, que nos relembramos a todo momento do magnífico texto sobre que assenta o espectáculo. Aos diálogos soberbos junta-se a interpretação de personagens afectadas, propositadamente um pouco artificiais, profundíssimas no minuto seguinte, retratando na perfeição o espírito do livro, cremos.

A Sibyl Vaine de Carolina Salles é a imagem da doçura, fragilidade e sentimentalismo na medida certa. Olhamos para aquela quase-menina e percebemos como foi possível Dorian ver nela um génio de artista que o amor vem destruir e faz regressar à sua pequenez social, física e até intelectual. A voz e o corpo da actriz ajudam bastante na construção desta personagem.

Quanto a Basil, não cremos que o de Wilde seja tão deprimido, fatalista e dramático como o apresentado por António Mortágua, seria talvez mais ingénuo sim, sem dúvida a personagem moralista do trio Gray-Wotton-Hallward, mas não necessariamente tão sofredor. A cadência do seu discurso é por vezes difícil de ultrapassar e a profundidade do que diz nem sempre vai além da forma.
Naturalmente, não sabemos se estas foram escolhas da encenação ou da construção de personagem.

O momento musical do espectáculo é estrondoso, arrepiante, relembra-nos como a simplicidade e a crueza trazem ainda e tantas vezes ao teatro cenas sublimes, sem necessidade de provocação pela forma, pelo excesso de artifício. Entramos no âmago da angústia de Dorian, tememos com ele, por ele.

De salientar a importância da luz neste espectáculo, envolve os actores de forma a que as personagens parecem estar sempre a não mostrar tudo, a alma nunca é totalmente dada.

Além dos momentos de encenação já referidos, há apontamentos excelentes como o próprio retrato de Dorian, a ida ao teatro e a respectiva representação de Sibyl, o desespero de Dorian. Sim, a simbologia é também ponto forte desta encenação.

Quanto a Dorian Gray, é vastamente conhecida a crescente corrupção e perversão do seu espírito que não marcam o corpo, pelos Primeiros Sintomas vamos ter de esperar até Março para saber saber dessa evolução.









1 comentários:

  1. Afinal,rectifico o que escrevi no post anterior,pois parece que há mais espectáculos que eu vi.Mas,dado o adiantado da hora,ficam para uma próxima oportunidade.

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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!