Da condição humana

Três depoimentos chocantes de pessoas meio mortas são-nos atirados sem barreira de protecção.
A repugnância que pretendem causar contrasta com a pena que inspiram e com os sorrisos com que nos falam. São três histórias sobre a humanidade, contêm tudo o que ela tem de mau e uns bocadinhos do que pode ter de bom. Ficamos atónitos, desde a primeira avalanche de palavras.

O espectáculo vive sobretudo do texto, poderosíssimo, de Judith Thompson, e é baseado em factos reais relatados por quem experimentou os horrores da guerra no Iraque.


O primeiro monólogo, interpretado por Ana Lázaro, conta-nos a história, na primeira pessoa, de uma soldado americana que ficou conhecida como o rosto da tortura de prisioneiros em Abu Ghraib. Lynndie England mostra-se-nos sem qualquer subterfúgio e assim  nos mostra a natureza humana, as suas fraquezas, os limites a que pode chegar, o quão vil consegue ser. E faz isso da forma mais sincera possível, é ainda de um ser humano que se trata, que está à nossa frente a discorrer sobre o mal mas que no entanto se sente e sofre também, é frágil e deixa-nos suspensos entre o asco e a pena.


É-nos depois apresentada a história de David Kelly, o especialista britânico que admitiu que não existiam armas de destruição massiva no Iraque e que foi depois encontrado morto, aqui interpretado por António Filipe. Este é o monólogo sobre a consciência humana, sobre até que ponto somos capazes de manter os olhos fechados enquanto o mundo à nossa volta está a desmoronar-se. Em que ponto decides fazer alguma coisa e até que ponto aguentas essa decisão.


Finalmente, temos o testemunho de uma mãe iraquiana que sobreviveu ao regime de Saddam Hussein passando, ela e a sua família, pela tortura no Palácio do Fim mas que acabou por não resistir aos bombardeamentos dos EUA em 1991. Esta iraquiana é interpretada por Maria José Paschoal e descreve-nos de forma visceral aquilo que um ser humano consegue suportar em nome de uma causa.

A interpretação dos três actores é sublime, rapidamente ficamos dentro de cada personagem, se nos identificamos, ou fora dela prontos a criticar quando sentimos o horror. Não ficamos chocados por estar a ver bonecos mas precisamente por estarmos a ver pessoas reais, que existem à nossa volta.

A encenação, de Pedro Carraca, é bastante simples e permite-nos dar atenção total à interpretação dos actores ao mesmo tempo que não nos deixa adormecer devido à energia que imprime a cada um dos monólogos.

Palácio do Fim é um espectáculo simples e directo, sem artifícios, não tem moral nem pretende ser qualquer outra coisa que não um retrato humano. Se nos emociona, é porque o que chega até ao público é tudo aquilo que preferíamos não ver, não saber, não ouvir. E chega-nos com rostos e corpos que nos fazem acreditar que aquilo existe, destrói-nos porque percebemos até onde é possível chegar.

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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!