Corão, de coração


Estreado em Julho de 2012 no Festival Internacional de Teatro de Almada, onde ganhou o Prémio do Público, Sr. Ibrahim e as flores do Corão, de Eric-Emmanuel Schmitt, volta ao Meridional continuando a sua tendência de privilégio do trabalho de interpretação do actor.

A unidade mínima humana não é um, mas sim dois

Num cenário vago e despido, Miguel Seabra e Rui Rebelo entram, na quase obscuridade, para uma posição de contadores de histórias. Um vai dar voz e corpo ao texto, o outro, melodia e eco.
É a história de Momo, Moisés ou Mohamed, um menino que nasceu judeu e que começa a descobrir o que é crescer aos 11 anos na Rua do Paraíso, e da sua amizade com o Sr. Ibrahim, o pretenso velho árabe da Rua Bleue. É uma história sobre a vida, uma vida. É uma história sobre a morte e sobre crescer. Sobre ser feliz.

Miguel Seabra conta tão aberta e simplesmente a história de Moisés que nos desconcerta desde o início. O que é que estamos a ver? Que miúdo é aquele que estamos a conhecer e que actor é aquele que provoca uma empatia imediata, como se através de Moisés estivéssemos também a reconhecer e a embalar a nossa própria infância?
Os sons e as alterações no cenário ao longo do espectáculo estão em sintonia perfeita, são como um só corpo, é como se se fossem criando no desenrolar da história, naquele momento. Como se se sentissem e daí partissem.

A lentidão é o segredo para a felicidade

Com toda a calma e desassombro, o Sr. Ibrahim vai guiando o seu Momo através das suas máximas de vida. O que está no seu Corão. Ensina-o a sorrir, a perdoar, a ver o mundo, a sentir sem pressas e sem agitação, pois só assim se vive.
Para se desdobrar nas várias personagens, o actor parece seguir essas máximas. Não precisa do aparato, da caricatura, de encher o palco de informação, mal precisa de se mexer para deixar o público completamente imerso no que conta, como se tudo se passasse cá dentro, também.
A relação entre o actor e o músico é tão orgânica, tão fluída, que nos transporta igualmente para aquela tranquilidade, cremos ter todo o tempo para ali ficar, queremos abraçar Momo, dizer-lhe que há-de crescer, queremos salvá-lo como se com ele nos salvássemos. Estamos ali. Completamente.

Aquilo que dás, é teu para sempre. O que guardas, fica perdido

Por estes dias - em que todas as desculpas são boas para disfarçar ou suplantar o sentimento, a humanidade, em que o parar para sentir é quase apenas perda de tempo e em que os próprios criadores parecem mais concentrados em desconstruir e em explodir per se - vivermos um momento que impressiona, que nos toca, que nos faz parar para ouvir, é algo tão raro, que é desarmante.
Por estes dias, estar disposto a dar algo desta forma, sem subterfúgios ou espalhafatos vazios, como o fizeram os dois intérpretes, é de aplaudir. E de pé. Aqui sim.


* As três frases destacadas: Miguel Seabra utiliza a primeira, em entrevista, para descrever a apresentação, a dois, deste espectáculo, é de Brecht. As duas seguintes são retiradas das falas do Sr. Ibrahim, no texto do espectáculo.



1 comentários:

 

Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!