Tudo o que conta é biblicamente simples e biblicamente complexo



Falar de Brecht sem recorrer a repetições é quase impossível, tendo em conta que a obra ímpar deste dramaturgo já foi 
esmiuçada por todo o tipo de estudiosos, artistas, actores, encenadores...  
Porém, permanece firmemente actual como nos mostra esta versão do Senhor Puntila e o seu criado Matti de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos. 
Faz todo o sentido falar hoje sobre os prazeres da vida e as diferenças entre classes sociais, senão vejamos: hoje, castram-se prazeres em nome da saúde, da segurança ou do meio ambiente numa escala que nunca antes se viu, mas 
por outro lado, nunca os prazeres que se pretende castrar estiveram tão acessíveis a todos nós (fumar, comer, beber); além disso, também hoje, quando a palavra que mais se ouve e diz é “crise”, volta a fazer-se sentir o “ódio dos pobres pelos ricos” (acusados de injustiça social) e nunca se falou tanto sobre o fosso que os separa. 

Nesta parábola, escrita por Brecht em 1940 e apresentada pela primeira vez em Portugal no Teatro Garcia de Resende em Évora em 1975, acompanhamos a história de um latifundiário, o senhor Puntila, que está quase permanentemente bêbedo e é já esse o seu estado natural, tentando por isso evitar “os ataques” de sobriedade a todo o custo que o fazem tornar-se uma pessoa cruel e “responsável” pelos seus actos. O senhor Puntila passa a ver no seu criado Matti um confidente e através desta relação conhecemos o charmoso, simpático e afável senhor Puntila (o bêbedo), e o 
senhor Puntila execrável, que trata mal todos os que não sejam do seu estatuto social (o sóbrio). A história desenrola-se durante o período de noivado de Eva Puntila com o adido. Durante este tempo Puntila ao sair de 
casa para buscar mais álcool fica noivo de três mulheres de Kurgela. Entretanto começando pelo pretexto de acabar com o seu noivado, Eva vai-se envolvendo com Matti. No dia do noivado, as noivas de Puntila convidadas para a festa são expulsas por ele, que está sóbrio, maltratando todos os presentes. Entretanto, Puntila não resiste e volta a beber e a “voltar a si”, termina com o noivado de Eva, expulsando o adido, abraça a criadagem e todos se divertem enquanto Eva tenta mostrar que pode viver como uma pobre. Finalmente, depois de várias confissões de Puntila a Matti 
na subida a uma montanha, Matti vai-se embora deixando Puntila e Eva. 
Puntila está novamente sozinho. 

O cenário minimalista com que nos deparamos desde que entramos na sala (vários actores já estão em cena) transforma-se numa estrutura grandiosa e multifuncional. Faz lembrar as obras arquitectónicas de 
Le Corbusier em que o funcionalismo se junta à estética, ao espaço onde se passa a acção, neste 
caso. Temos uma estrutura de madeira gigante que se transforma em casa, em sauna, em montanha e ao mesmo tempo é aproveitada nos movimentos das personagens, nas suas saídas e entradas e até na construção do seu 
carácter, diria. É sempre demonstrativa do estado de embriaguez da personagem principal, uma vez que impossibilita o andar direito, sóbrio. É como se todo aquele mundo dependesse do estado do Sr. Puntila, o que na 
realidade da história acontece (todos dependem dele para obter trabalho). 
Mas também as personagens “menores” utilizam o cenário para se 
apresentarem mais alegres, simples, cansadas ou mais rígidas, por oposição, escolhas bastante interessantes de encenação. 
Ao longo da peça o cenário também é montado e desmontado pelas personagens, uma marca de Brecht, que contribui para o efeito de distanciamento. 




A encenação por ter resultado num espectáculo tão grandioso é difícil de analisar de forma não exaustiva, mas teve momentos brilhantes em cenas como a da destruição das garrafas (marco fulcral na história da personagem 
principal que decide deixar de beber), na saída das personagens literalmente a desaparecerem de cena e do palco.  
Houve de um modo geral uma preocupação em aproveitar todos os elementos de cena para enriquecimento da história e das personagens.  
O cenário é utilizado para a movimentação das personagens, dá a ideia de longe e perto, grandeza e simplicidade.  
A projecção é uma óptima ideia para provocar o público e torná-lo parte do espectáculo como é característico do teatro épico, a quebra da quarta parede. Aqui a novidade não é a projecção de imagens que ajudam na construção do cenário, mas sim na gravação em tempo real do que está a acontecer em palco e no público.  
Com a capitulação a servir de narrador, também típico do teatro brechtiano, parece-nos estar num filme de Tarantino, quer pela “imagem” dos capítulos quer pelo absurdo dos títulos e até das cenas que tantas vezes vêm a seguir. 
A banda é mais um elemento de quebra que provoca o não envolvimento do espectador na cena, pelo menos sentimentalmente. As suas entradas são normalmente cómicas, mesmo quando em cena se trata de coisas mais 
dramáticas precisamente para levar o espectador ao sentido crítico racional e não sentimental. De resto os momentos musicais e de silêncio são sempre provocados por esta banda que tem a característica de existir quer para nós 
público, quer para o senhor Puntila. 




Esta encenação permitiu um trabalho notável de Miguel Guilherme, o senhor  Puntila. Não é a primeira 
vez que faz uma peça de Brecht, antes pelo contrário, foi quase por Brecht que começou, nos seus primeiros 
tempos como actor na altura em que teve a sua formação no teatro da Comuna com João Mota.  

É daquele tipo de actores que consegue de facto fazer boa comédia, não basta ser engraçada, mas ser a sério. Quando a comédia é encarada com esta seriedade e rigor é sem dúvida um dos géneros mais difíceis para um actor e Miguel Guilherme passa neste teste com distinção ao conseguir rodopiar entre o drama e a comédia sem perder o rigor da personagem. Voz, corpo e dicção credíveis ao ponto certo: acreditamos no simpático bêbedo e no latifundiário cruel, mas não temos pena dele, apenas pensamos na sua situação como uma escolha passível de crítica.  
De salientar os excelentes momentos de improviso com o público que demonstram mais uma vez a certeza, o trabalho que tem de haver para se construir uma personagem, de modo que ela já exista quase por si só, aconteça o que acontecer. 

Já quanto a Sérgio Praia, Matti, quem o conhece não tem por que ficar muito surpreendido com este desempenho. É claramente um actor com bastante técnica, o que se nota na dicção, voz e corpo em cena, o que permitiu a construção de uma personagem sólida e bastante eficaz. Contudo, desilude um pouco ao ser bastante semelhante nestes elementos a outra das suas personagens neste mesmo espaço do Teatro Aberto em 2009, na peça Deus da Matança de Yasmina Reza, onde contracena também com Sofia de Portugal, que parece ter tido o mesmo problema. Sentiu-se a falta de versatilidade quer do actor, quer até da personagem, pois não se viu tanta facilidade/espontaneidade nas reacções de Matti como na personagem do Sr. Puntila. Fez-se notar, achamos, que o actor fez da sua personagem um bom suporte de cena mas não conseguiu elevá-la ao protagonismo que talvez merecesse.  

Quanto a Sofia de Portugal, Eva Puntila, é também uma actriz que já sabemos forte em palco, mas peca pela 
falta de versatilidade. Tem uma voz muito forte mas também muito característica que nos faz quase inevitavelmente pensar nas suas anteriores personagens o que, quanto a mim, só faz perder a esta Eva, porque o que passa cá para a fora é apenas a actriz Sofia de Portugal a representar. Aliás quase exactamente com a mesma técnica que apresentou em O Deus da Matança.  




Para nos refrescar temos a personagem do adido, interpretada pelo actor Cristóvão Campos. 
Bom apontamento cómico que serviu na perfeição para o efeito de distanciamento pretendido por Brecht.  
As suas entradas em cena, pela sua movimentação, figurino, ritmo vocal, provocam no público uma quebra na emoção que por vezes a história nos leva a sentir, mostrando-nos imediatamente que estamos a ver teatro e não 
nos devemos esquecer disso. Nesta peça em particular esta questão parece bastante importante uma vez que trata de delicadas questões sociais, logo é imperativo que o espectador não se deixe “sentimentalizar” pela história de 
amor entre Eva e Matti, por exemplo, e o adido atinge este objectivo perfeitamente. Veja-se a cena em que ambos vão apanhar caranguejos e acabam apaixonadamente a cantar canções amorosas enquanto o adido passa por eles num ritmo totalmente diferente provocando certamente estranheza em toda a audiência. 
O actor aqui tem a função de interpretar o que costumamos chamar de “boneco”, uma personagem tipo, mas tendo em conta a sua função, adequa- se em pleno. 

Quanto ao trabalho dos actores e personagens não podemos deixar de salientar o cuidado que todos tiveram na sua preparação, independentemente do grau de protagonismo na peça.  
É impossível não falar por exemplo nas noivas do senhor Puntila (interpretadas por Mafalda Luís de Castro, Patrícia André e Sara Cipriano). 
Se por um lado protagonizam momentos alegres, vivaços e leves, por outro são responsáveis pelos momentos mais sérios da peça: as histórias de uma Finlândia quase feudal, onde os senhores exploram constantemente o povo, 
este sempre orgulhoso e honrado. Nesse momento nenhum espectador consegue deixar de pensar na realidade à sua volta, onde decerto há este tipo de injustiças. É mais uma vez “o abanão” de Brecht a acordar-nos para o mundo em que vivemos. 




Também fulcral é o desprezo demonstrado pelas personagens Padre e Juiz (Francisco Pestana e Rui Morrisson) em relação aos mais pobres, quando o senhor Puntila, já embriagado claro, os chama a sentarem-se à mesa consigo 
e os seus criados, essa situação de eventual igualdade provoca neles um esgar de desprezo que resume toda a ideia da peça.  

Esta peça foi adaptada por Brecht de uma comédia de Hella Wuolijoki, escritora finlandesa que lutou pela igualdade social, sendo marxista ferrenha. Brecht inspirou-se também nos tempos que viveu na sua propriedade e nas histórias que a ouviu contar e de que dizia serem “biblicamente simples e biblicamente complexas”.  

Toda a música, ambiente cómico e festivo, o tango, as canções, parecem elementos distractivos das coisas “mais sérias” mas na verdade, o objectivo épico foi cumprido, já que não nos deixam esquecer que o fosso que separa 
ricos e pobres vive sobretudo de preconceitos mas também de hábitos sociais instalados e reforçados por ambos os lados. Por um lado, o orgulho dos pobres que estes querem manter, por outro o desdém dos ricos em 
relação aos hábitos de vida do povo.  
A ponte entre estes dois mundos é feita pelo Senhor Puntila, que só quando está bêbado consegue esquecer os preconceitos e aceitar as pessoas pelo que são, viver com a simplicidade que nós gostaríamos de conseguir alcançar. 



















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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!