A farsa que é tudo

Dinny e os seus filhos, Sean e Blake, vivem num bairro social de Londres. Todas as manhãs, depois de Sean regressar do supermercado, começam a interpretar uma farsa e percebemos que o fazem todos os dias, todo o dia. É a história da família quando ainda vivia na saudosa Irlanda, tal como Dinny diz que ela aconteceu. Dinny incutiu nos filhos um medo terrível do mundo exterior, não permite que saiam do apartamento, exceptuando as idas de Sean ao supermercado, e obriga-os diariamente a ser os actores da sua própria vida. Mas neste dia algumas coisas correm mal e vamos percebendo a tragédia que se quer esconder com a farsa.







Num texto sublime de Enda Walsh vemos o teatro dentro do teatro, as pessoas dentro das pessoas, uma história que nos conta tantas outras histórias. Há um padrão de comportamento, uma rotina opressiva que inevitavelmente acabará na necessidade de explosão, de mudança. É isso que sentimos nas personagens dos filhos, estão à beira da fuga de si próprios.

O pai tenta impor-lhes uma realidade que não existe e obriga-os a representar uma que nunca existiu mas que ele precisa que seja verdade para conseguir continuar a viver, para estar em segurança. Quando os filhos começam a aperceber-se que já nem nas suas recordações podem confiar, porque já foram recriadas milhares de vezes, e que talvez o mundo lá fora seja diferente e que eles talvez pudessem viver de forma diferente, então aí começam a não conseguir representar. Começamos a ver momentos de quebra, o conflito entre a ideia de desistência e a ideia da fuga, a vontade de acreditar e de manter a rotina mesmo já sentindo que nada daquilo é real.



As interpretações dos actores Américo Silva, António Simão e João Meireles são indiscutivelmente brilhantes. A rapidez com que trocam completamente de personagens, voz, corpo, atitude e emoção, é de um rigor impressionante.
A teatralidade dos gestos enquanto as personagens estão a representar contrasta com a fragilidade que nos mostram quando não estão e em qualquer momento a técnica é irrepreensível.
São tão díspares as pessoas que cada um deles cria aos nossos olhos que não precisaríamos dos acessórios para perceber quem está em cena.

Cada personagem de cada um deles tem os seus próprios trejeitos, forma de estar, de andar, de falar, rir. Até na linguagem de cada personagem há uma evolução conforme a idade. Falo das diferenças na expressão de Sean e Blake em criança e depois em adultos.
Cada pormenor foi trabalhado e sustentado a todo o tempo.
Sem grande esforço poderíamos imaginar como vivia cada uma daquelas pessoas fora daquela casa.

Também a actriz Laurinda Chiungue nos apresenta uma personagem muito bem construída, muito trabalhada na linguagem, corpo e emoção. Não esqueçamos que é ela o detonador último do twist final.



João Meireles, Américo Silva e António Simão brindam-nos com uma encenação maravilhosa em que é impossível, e seria ingrato, pestanejar. O ritmo é frenético e cada ponto é fundamental para não deixarmos escapar a história.
É uma verdadeira farsa o que nos dão. O exagero dos gestos, a caricatura dos figurinos, a sinalética cómica,  estão lá, é o teatro no seu expoente. É o falso, o artificial sempre que as personagens estão na sua cena.
Quando não estão, emocionam-nos.
A cena final da peça é absolutamente avassaladora. O público vive o drama de Sean, quer decidir por ele, quer forçá-lo a tomar a decisão certa, sofre com ele. Aqui, são as decisões de encenação que o produzem com os tempos certos, os silêncios, a forma de repetir tudo uma última vez.

Não podemos deixar de falar nos figurinos e acessórios de cena que são geniais no absurdo que pretendem transmitir.
Até o som, a música do gravador, podemos dizer que nos provoca esse efeito na perfeição, o de absurdo cómico.

Esta peça dos Artistas Unidos mostra a simbiose perfeita entre actor, encenador e texto. Sem falhas.
É um drama sobre pessoas, sobre o que elas precisam para se aguentarem, ao limite.
É um drama apresentado entre lágrimas de tanto riso e é isso que nos quebra a nós.
É teatro senhores, é teatro.






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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!