Para além do umbigo

Eu, nascida (mais ou menos) e criada (totalmente) na margem Sul, passei a maior parte da vida a tentar passar o rio de vez e a trocar o subúrbio pela grande cidade. Pode não parecer mas a coisa é mesmo diferente de cada um dos lados, para o bom e para o mau. E o que é a coisa? Ora, a vida, as pessoas, as roupas, os trabalhos, os tempos livres, as piadas, a cultura, os objectivos, as famílias… É diferente. E sei que existe o sentimento migratório oposto, sei das muitas pessoas que preferem a coisa do outro lado do rio, do lado em que ainda há golfinhos e flamingos, por exemplo.


O teatro O Bando foi um dos que fez esse movimento inverso (ao meu) trocando um necessariamente emparedado teatro da capital por 4 hectares de terra verde a cheirar a rosmaninho em Palmela, mais concretamente Vale dos Barris. Lá, uma das mais antigas cooperativas culturais do país decidiu construir a sua casa e convida-nos diariamente - além das constantes produções próprias recebem sempre grupos em acolhimento -  a sair do sofá para o teatro, para o campo, para as estrelas.

Mas bolas, já custa sair de casa ou desperdiçar uma noite de copos para ir ver uma peça onde a linha do metro alcança, para quê ir até Palmela?

Bom, se conseguirem no meio da cidade ser recebidos por uma lareira, queijo feito ali ao lado e  moscatel enquanto esperam que um espectáculo comece sem saberem sequer onde é o palco (se ao relento, se num dos armazéns, se no meio das árvores de fruto ou dos animais, se por todo o lado, em percurso) se calhar não vos compensa ir tão longe. Mentira. Para além do cenário natural em Palmela esperam-vos actores e espectáculos únicos, construídos também do que não é teatro, construídos das gentes e para as gentes, experimentados em sítios tão diferentes que quando nos chegam parece que acabaram de nascer, ali, só para nós.

O que raio estou eu a dizer que me escapo para a poesia?

Das vezes que fui a’O Bando ver espectáculos, ou dos que ele trouxe até mim aqui mais perto, fiquei maravilhada com a estranheza das criaturas que encontrei. Ali trabalha-se o corpo. a oralidade e o cenário, bem mais funcional do que real, de uma forma que ainda não vi em mais nenhuma Companhia. Vê-se um trabalho imenso todo dirigido ao público, tudo para nos mostrar coisas novas, experiências deles, mas sempre para nós, sempre para que nós possamos descobrir essas coisas e entrar no mundo criado por eles.


Além disso nem tudo é teatro n’O Bando, muito é comunidade. Multiplicam-se as acções de formação de actores em Palmela, os almoços de Sábado abertos a quem quiser ir ao campo trocar ideias e paladares, as peças pensadas em cooperação com os produtores locais, as adegas, a adaptabilidade do grupo a cada um destes espaços no sentido de se tornar maior e a nós também, que crescemos ao entrar pelo desconhecido, longe da nossa sala de estar e das cadeiras rebatíveis dos teatros confortáveizinhos que deixam adormecer.

Ir a’O Bando é sempre promessa disto tudo e pouca vontade de voltar à cidade. Vão lá ver e dir-me-ão de certeza que Lisboa nem sempre chega.


E agora uns subúrbios aqui mais perto, uns subúrbios de conteúdo apenas, uns espectáculos estranhos e surpreendentes que aparecem uma vez por ano num recanto escuro da cidade. Falo-vos do trabalho da Plataforma285.


Nascida em 2011 pela mão de 3 actores e uma fotógrafa - Cecília Henriques, Luís Lucas Lopes, Raimundo Cosme e Rita Chantre - esta Companhia comprometeu-se a criar espectáculos originais “sem linha narrativa” e “procurando a não teatralidade” o que, confesso, me deixa à partida apreensiva e no final dos espectáculos extasiada por ter visto algo surpreendente, muito bom, cheio de ideias, mesmo que vá contra aquilo que eu normalmente quero ver quando vou ao teatro.

E isto é o quê, senhores?

No primeiro espectáculo um casal mostrava-nos o amor sem dizer uma palavra e a plateia enternecia-se sem se conter. Posso jurar que vi mãos entrelaçarem-se e suspiros saltarem de olhos a brilhar, porque também eu padeci disso sem querer. No espaço do Cão Solteiro, uma sala minúscula - uma loja - sem palco e quase sem linhas rectas, o amor aconteceu de forma desconcertante. Um trabalho sincero e bem feito, bem preparado e com tantas ideias que a forma mais ou menos convencional deixa de importar, desaparece.


Foi este o primeiro embate que tive com a Plataforma285. Depois o grupo seguiu uma linha um pouco política, mais interventiva com ideias muitas vezes contrárias às minhas e, no entanto, voltava a sair da sala a gostar das ideias do espectáculo, mesmo se não concordava com o texto. E isto é a beleza do teatro. Pouco me importa que eles digam que não querem teatralizar. Teatralizam, sim, nada do que vemos com eles é a realidade e, como em qualquer boa peça, é por vezes melhor, mais intensa.

Mimesis Mortalis é o seu mais recente trabalho e é um espectáculo sobre a banalidade. Não se pense por isso que vão encontrar-se ideias preguiçosas, explosões de nada. O que vamos encontrar somos precisamente nós, reduzidos ao mais ínfimo pormenor do nosso desinteresse. Vá lá, qualquer um de nós cai quase diariamente na esparrela de ser banal, seja porque não conseguimos evitar ou precisamente porque não queremos dar-nos ao trabalho de ser outra coisa quando estamos numa viagem de elevador interminável com estranhos e nos sentimos obrigados a comentar o tempo.

Porquê subúrbios?

Porque apesar de a maioria dos seus espectáculos ser apresentada na capital nada tem a ver e nunca é favorecida por essa realidade. Não é possível, ou pelo menos provável, ir por acaso ver um espectáculo desta companhia. Não se passa à porta de um teatro e eles lá estão - ah que giro, hoje vamos experimentar isto. Não. É mais ou menos como o slogan da RTP 2 - Quem vê quer ver. É preciso ir a espaços escuros perdidos no meio dos armazéns da Lx Factory ou a uma das salas da Pensão Amor num dia específico, por exemplo.
Subúrbios porque o que ali se vê é diferente de tudo o resto que se pode encontrar na Agenda Cultural da cidade ou da Time Out. Sim, mesmo daqueles, tantos, grupos que se assumem como a evolução do teatro para a experimentação. Estes meninos não estão ali a experimentar umas coisas. Acredito que essa parte vem antes apenas. Quando estão em palco estão a dar-nos coisas que levamos para casa. Ideias novas tão afastadas do centro que parecem fora daqui, sabem?
E é muito bom poder sair do centro, do conforto, do que esperamos, sem ter que ir muito longe.




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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!