Não tinha tecto, não tinha nada

Um casal e a sua filha vão numa viagem aparentemente interminável num comboio inter-regional e, discutindo os planos da Organização que lhes levou os outros filhos e está prestes a levar esta, queixa-se sobretudo das casas-de-banho de segunda classe que nunca fecham e da quantidade ideal de méchouia para uma viagem destas. Depois de comer o kebab é altura de armar a filha de explosivos mas nenhum sabe exactamente o que é suposto fazer. Bem diz a miúda que deviam ser operacionais a tratar disto e não uns velhos que só dão para a apanha do tomate. Mas como nem só de operacionais se faz a guerra, a filha dá a benção aos pais e dirige-se a rezar ao supermercado mais cheio da cidade.

Jorge Gonçalves
Os Artistas Unidos voltam a trazer a cena Antonio Tarantino depois de Stabat Mater, A paixão segundo João e A Paz, em 2013. Em A casa de Ramallah o autor apresenta-nos uma Palestina e uns comuns palestinianos inventados mas desconfortavelmente verosímeis que comicamente nos vão descrevendo a sua tragédia, as suas vidas tão simplesmente destruídas logo à partida e até ao fim. Num texto de horror disparado num disfarce de realismo viajamos, através daquele comboio, à tragédia quase endémica de um povo que nos habituámos a ver morrer na televisão.

A encenação de Jorge Silva Melo despe tudo o que vai para além das três interpretações. Só temos as imagens criadas pelo texto, tantas, tão rápidas e confusas, tão fora da nossa realidade que inicialmente é difícil vermos e percebermos tudo o que se está a passar. Porque é tudo o que ali se vê: entre a descrição romântica da apanha do tomate surgem unhas podres e trabalho interminável; entre a lealdade a uma causa que mal se compreende, perdem-se convicções mas nunca a entrega total e inquestionável; entre o hábito da miséria aparece a dor de quem vai perder o último filho para um Deus que é mais forte por ser o mais novo, que é mais cruel porque as únicas armas que tem são as vidas dos que nele crêem.
Esta opção pelo quase vazio do cenário e marcações deixa-nos tudo isto em que pensar e, num texto tão forte e imagético, pouco mais precisamos além de sólidas interpretações.

Andreia Bento, António Simão e Nídia Roque sobrevivem incrivelmente a este texto e as estas personagens cruas e agressivas na medida do sofrimento que parecem querer adormecer ao gritarem a sua trágica realidade.
Mergulhados muitas vezes em quase monólogos, pode ser difícil mantermo-nos sempre concentrados em toda a energia que os actores nos transmitem. Mas nem por isso esmorecem e os momentos mais emotivos surgem-nos de repente, brutalmente, pelo inesperado e pela disfarçada frieza que aquelas personagens são obrigadas a manter para sobreviver. Nos raros momentos em que uma delas quebra, logo a outra a levanta ao empurrão, não vá o desmoronar ser para sempre.
Nisto tudo os actores nos salvam sempre e salvam-nas a elas, levando-as do histriónico ao sentimental, do quase absurdo ao realismo triste e simples, sem se perderem eles.

É um espectáculo que corre o risco de chatear quem vai à procura de coitadinhos e sentimentalismos. Aquilo que vemos, aquela estória ali inventada, choca-nos por nos lembrar a realidade, a sua parvoíce e bestialidade, a injustiça diária e banal a que deste lado do mundo tão facilmente nos habituámos a assistir. "Mas, na brutalidade desta história que vivemos hoje, conseguiremos ouvir o lamento imundo destes desgraçados?". Fica a pergunta do encenador.


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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!