Na ilha ibérica

Seguindo a sua linha habitual, O Bando trabalha um texto não dramático, um romance, de José Saramago desta vez, mais uma vez: A jangada de pedra.



O palco do S. Luiz está recortado em menos de metade. Já em altura, mais uma das estruturas megalómanas d'O Bando ocupa todo o espaço e deixa-nos suspensos desde o abrir do pano. Antes disso, já todo o público ficou agarrado às cadeiras desde que os músicos começaram a tocar por toda a sala. Os metais são agressivos e entranham-se enquanto cabeças curiosas tentam captar tudo o que se está a passar, ninguém quer perder o espectáculo, ninguém tem a certeza de onde vai continuar.

Na nesga do palco que nos dão, a voz poderosa de Sara de Castro enche todo o espaço, faz-nos calar meio boquiabertos - começou a história.

E a história quase todos conhecemos: a península ibérica separou-se da Europa e vai navegando Atlântico fora sem destino, os destinos de cinco pessoas cruzam-se, emaranham-se até nada poder voltar a ser o mesmo.

A encenação, de João Brites e Rui Francisco, utiliza o cenário, a música e as luzes de forma brilhante: ao longo de todo o espectáculo a respiração do público vai acompanhando os actores de rede em rede, andar em andar, não há um único momento sem tensão e as imagens conseguidas pela queda das placas e consequente estreitamento da cena e da realidade que ali se vive são apontamentos notáveis, bem como a "fuga" das personagens do fim do mundo através do jogo de sombras.


Das interpretações irrepreensíveis destaca-se o Pedro Orce de Nuno Nunes pela completa transformação do corpo e da voz do actor. Já o sotaque da Joana Carda, por Anna Kurikka, pode provocar alguma estranheza. Estranhos, propositadamente, são também os corpos dos actores e respectivas movimentações que vêm remarcar o inconfundível estilo d'O Bando na construção de personagens.


Quanto ao final surpreendente e, diríamos, interventivo do espectáculo, é uma assinalável interpretação possível do que seria a palavra do autor hoje. Marcante, é sem dúvida.

Resta dizer que é sempre uma surpresa agradável ver a adaptação de uma obra desta profundidade que não dá apenas atenção à narração. É, sim, reconstruída numa criação repleta de ideias mas que não pretende chocar com a obra de onde provém.
O Bando, se dúvidas houvesse, mantém com esta Jangada de Pedra o seu lugar cimeiro entre o melhor que se faz de teatro em Portugal.


De viagem em viagem, quer as personagens quer a península parecem não conhecer os seus destinos ou sequer o caminho que estão a percorrer, alternam entre seguir uma direcção ou girar sobre si próprios à procura de respostas que nem o mundo foi capaz de lhes dar.

Afinal, ainda bem que não há lei que proíba viver-se sem Norte.



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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!