"Oh!", disse o senhor K., e ficou pálido.
É-nos apresentado o senhor Keuner. A personagem que Brecht foi criando e revisitando ao longo de trinta anos é aqui reconstruída em retalhos, como se viesse escrita em vários livros, cartões e papéis em cena. Como se a cada casualidade pudesse emergir um pouco de senhor K. com as suas opiniões filosóficas ou lacónicas sobre a coisa mais singela da vida ou o cenário mais abstracto.
João Meireles volta a criar a sua tão especial intimidade com o público enquanto lê fragmentos daquela personagem, interpretando-a ou só surpreendendo-se com ela, como se as suas parábolas viessem sempre a qualquer propósito.
"Nós os dois já não conseguimos ter uma conversa", disse o senhor K. a um homem. "Porquê?", perguntou este intimidado. "Na sua presença não consigo articular nada que tenha senso", queixou-se o senhor K. "Mas eu não me importo", disse o outro a consolá-lo. "Acredito", respondeu exasperado o senhor K., "mas importo-me eu."
A encenação é simples, movimentando-se o actor pouco e lentamente entre uma mesa e uma cadeira para nos ler o que diz, pensa ou questiona o senhor K.
O cenário é também só isto, parte de um escritório com alguns livros e cartões cheios de senhor Keuner, em texto quase sempre desconcertante.
Poderíamos ficar com a dúvida se estamos a assistir a uma leitura encenada ou a um espectáculo de teatro. Mas a forma como o actor, em personagem, nos encara sem nos incluir à conversa indica que não é uma simples leitura aos espectadores, mas sim uma tentativa de reconstrução de uma personagem sem no entanto haver fusão com a que o actor interpreta.
Senhor Keuner é considerado uma das personagens mais intrigantes de toda a literatura e apontado como alter-ego de Brecht. Será então o autor o que aqui é afinal interpretado?
Não é bom que os homens sejam diferentes uns dos outros; deviam ser iguais. As pessoas iguais dão-se bem, as diferentes aborrecem-se.
*as frase a negrito são excertos do texto. As fotografias são de Jorge Gonçalves e foram cedidas pelos Artistas Unidos
O espectáculo estará em cena no Teatro da Politécnica de 20 a 31 de Janeiro.
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