Coup de foudre

A palhaça começa a descer as escadas em direcção ao palco e conquista todo o tempo, todo o espaço imediatamente. Pelo menos até tocar o segundo gongo. Aí, tudo se desfaz num movimento suspenso, o público curvado sobre si mesmo à espera de mais, mas eis que aquele momento desapareceu. Um momento de uma hora, uma hora apenas e certa, o que se podia chamar um happening, mas este a acontecer verdadeiramente de corpo e alma, sem pose, sem pseudo, só generosidade total da actriz.

O espectáculo Julieta foi criado a partir de uma residência artística n'O Bando com Elsa Valentim e Mário Gonzalez, mestre de Commedia Dell'arte. Está em digressão nacional e internacional desde 2012 e pousou brevemente no Teatro Meridional. É um espectáculo de clown, diz-nos a sinopse. É um espectáculo inesperado e surpreendente, dizemos nós.
A actriz Elsa Valentim é Carmen e está sozinha em palco. Demasiado sozinha muitas vezes, parte do público não está ali e ela sabe isso, joga com isso, arrisca tudo até nos deixar arrepiados com medo que salte demasiado. Nunca o faz. Rodopia entre Shakespeare e o improviso com tudo o que acontece à sua e à nossa volta. Brinca com as melgas, com as moscas e connosco como se tudo estivesse encenado. Só o seu corpo está. Sempre alerta, sempre a aproveitar, a agarrar tudo para nos dar de volta com a maior graça. Uma disponibilidade sem medo e sem exibicionismo, conjunto nada fácil por trás de um nariz, mas obrigatório para um bom clown.

Carmen faz Romeu e Julieta com a simplicidade que o torna tão próximo, tão universal e intemporal como o texto merece. Sem declamação, sem cantilena, dois apaixonados apenas, com a poesia que só os apaixonados conseguem fazer sem sentir o ridículo, sem o criar sequer.
Carmen interpela o público mordaz e certeiramente, trá-lo para a cena sem nunca a perder. Impõe-se, mesmo aos que achavam estar ali só para se distrair.

A luz vai construindo lugares, cenário, solidão e jogo quase sem a vermos. Habitualmente quer-se sem ser notada e neste espectáculo é precisamente assim que acontece. Só quando Carmen pede ao técnico de luz que lhe dê o jardim é que nos apercebemos de tudo o que tem estado a ser dado sem sequer repararmos.


Julieta é um espectáculo difícil para um público que não vê teatro ou que prefere stand-up. É um momento de teatro que se constrói ali, a muitas vozes mas sempre sobre a hábil batuta da actriz. É uma paixão assolapada, à primeira vista, que nos deslumbra durante uma hora. Uma hora só e é um coup de foudre.


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Meet The Author

Rita Branco Jardim é actriz de formação e escritora de inspiração. Começando pelos diários adolescentes e pelos embaraçosos concursos de escola, foi crescendo enquanto escrevia poesia, prosa poética e pequenas peças de teatro. Autora de blogs pessoais e culturais, criou o Sobre as Cenas, inicialmente apenas ligado à crítica de teatro mas que quer agora estar mais aberto a outro tipo de textos: os avulsos. Neste momento, escreve no Sobre as Cenas sobre teatro e o que mais lhe der na real gana. Bem-vindos ao Sobre as Cenas!